Núcleo OBEDUC - MG/RJ/RS

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sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Qualidade da educação científica na voz de seus protagonistas




Marcia Duarte[1]
Roberta Comissanha de Carvalho
Luziane Beyruth Schwartz
Flavia Rezende



Uma introdução à discussão sobre a qualidade da educação científica

            A história da pesquisa em ensino de ciências, pode nos ajudar a entender como têm sido postas questões sobre a qualidade da educação científica. Sua origem na América do Norte, como consequência dos esforços empreendidos para aumentar a eficiência do ensino de ciências frente à corrida espacial na década de 50 do século XX, marca até hoje, com traços do eficientíssimo pretendido naquele momento, tanto a pesquisa quanto o ensino nessa área. Desde então, a pesquisa em Educação em Ciências (EC) tem priorizado os aspectos metodológicos e epistemológicos e a lógica do conhecimento científico de referência, no sentido de garantir a eficiência dos processos de ensino-aprendizagem. Esta característica, ainda dominante, assume a qualidade do ensino de ciências enquanto  qualidade  do aprendizado, sem ver como necessária a refleo sobre seus objetivos, assumindo-os como evidentes ou como a formação de quadros técnicos necessários ao desenvolvimento científico e tecnológico e ao mercado. Esta falta de questionamento dos objetivos da EC parece desconsiderar a educação como campo intrinsecamente político e social, o que, por conseguinte, deixa a discussão sobre qualidade passar ao largo desses aspectos.
É possível ver essa tendência no ensino de física, por ter sido esta área, entre as ciências da natureza, a precursora no desenvolvimento de pesquisas em ensino. De acordo com mapeamento realizado por Rezende, Ostermann e Ferraz (2009), o estado da arte da produção nacional sobre o ensino de física na primeira década dos anos 2000 tem se concentrado na temática ensino-aprendizagem, apoiando-se sobre um tripé: propostas de metodologias e estratégias de ensino, desenvolvimento de experimentos para o laboratório didático e elaboração de recursos didáticos para a sala de aula. As autoras interpretam essa configuração da área como a expressão de uma visão instrumentalista da pesquisa em ensino e muitas vezes tecnicista do processo educativo, que visa basicamente ao fornecimento de subsídios ao professor para melhorar o desempenho do aluno (p. 5).
Considerando que, assim como a pesquisa em ensino de física, a pesquisa em ensino de biologia, de química e de matemática também vem priorizando o aspecto metodológico,é possível vislumbrar um vel de conhecimento importante no sentido de indicar direcionamentos para a qualidade da prática docente e da aprendizagem, apontando, por exemplo, a necessidade de considerar o conhecimento prévio do aluno, de mudar a visão empirista impressa no ensino de ciências, de promover interações dialógicas em sala de aula e de incorporar significativamente as tecnologias da informação e comunicação (TIC) no ensino.
Por outro lado, a área de pesquisa em EC tem dado pouca importância às políticas educacionais como caminho para se atingir a qualidade. É notável que, nos eventos científicos da área, o número de trabalhos sobre essa temática seja sempre frequentemente muito baixo ou até nulo. A falta de reflexão acadêmica sobre as políticas educacionais tem tido como consequência o fato de que, em muitas pesquisas, documentos oficiais tais como os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), por exemplo, sejam citados para validar ou justificar o trabalho ou até como referencial teórico, voltando-se em qualquer um desses casos, para o  atendimento e divulgação das propostas educacionais do governo (REZENDE; OSTERMANN, 2005).
Neste sentido, é fácil perceber o quão frequentemente os conceitos de interdisciplinaridade, competências, habilidades e contextualização m assumido papéis importantes nas pesquisas em ensino de ciências e sido vistos como sinônimos de qualidade. Por meio dos conceitos de contextualização e competências, seria difundida a ideia de que a educação deve servir de ferramenta de inserção social, vinculando-se ao  mundo produtivo, sem a preocupação, entretanto, com os questionamentos de como se constituiu ou se constitui este mundo. Como consequência, tem-se observado que muitos professores entendem o princípio da contextualização como a abordagem descritiva de situações do cotidiano e de fenômenos da natureza com a linguagem científica, deixando de explorar as dimensões  sociais, políticas e culturais nas quais esses fenômenos estão inseridos (SANTOS, 2007).
Entendemos que, embora toda a produção da área dedicada à investigação do processo de ensino-aprendizagem possa ser considerada um passo importante na direção da qualidade, o como desvincular a refleo sobre a qualidade do ensino de ciências da refleo sobre seus objetivos. Chassot (1998), por exemplo, alerta para o fato de que, sendo a educação um processo político e ideológico, a educação científica poderá tanto preparar o indivíduo para a utilização racional do conhecimento científico e tecnológico para buscar o bem da coletividade, como para explorar o conhecimento apenas a fim de obter benefícios pessoais, independentemente das consequências sociais e ambientais de tal atitude. Lemke (2006) defende a reorientação do currículo de ciências para questões e problemas sociais que terão de ser enfrentados por toda a humanidade no século XXI, como, por exemplo, a crise ambiental e a injustiça social, visando a uma sociedade melhor e uma vida mais satisfatória para as pessoas. O autor acredita que legisladores e protagonistas da EC devem tomar atitudes políticas e morais ou seremos julgados, seja pelos estudantes, seja pela história, como socialmente irresponsáveis. Apesar de defendida por alguns pesquisadores, esta orientação está longe de ser realizada, como alerta Banet (2007), para quem é evidente que a formação recebida pelos estudantes no ensino secundário, centrada nos conceitos e leis próprios das disciplinas, não atende às necessidades da sociedade atual e deixa de lado outros âmbitos formativos importantes, como, por exemplo, os processos que caracterizam a atividade científica. Assim, para este autor, nem se efetiva uma EC satisfatória, nem se atendem às necessidades formativas dos cidadãos na atualidade.
Os estudos sobre as abordagens curriculares com ênfase na relação Ciência-Tecnologia-Sociedade (CTS) o a linha de pesquisa da área que prioriza a qualidade política da ciência e da educação. Estes estudos defendem um currículo que explore a relação entre ciência, tecnologia e sociedade, e apontam, como sua principal proposta, a preparação dos estudantes para o exercício da cidadania (SANTOS; MORTIMER, 2002). Estes autores alertam, por outro lado, que uma reforma curricular com ênfase em CTS implica mudanças de concepções do papel da educação e da EC, ou estaremos incidindo no erro de, simplesmente, maquiar os currículos atuais com pequenas aplicações de temas sociais do cotidiano.
Moreira e Kramer (2007) se voltam para a concepção de qualidade da educação centrada na realidade do Terceiro Mundo, e consideram o conhecimento escolar apropriado aquele que possibilita ao estudante tanto um bom desempenho no mundo imediato quanto a análise e a transcendência de seu universo cultural. Para os autores, relevância da educação diz respeito “ao potencial que certos conhecimentos e processos pedagógicos apresentam de tornar as pessoas aptas a definir o papel que devem ter na mudança de seus ambientes e no desenvolvimento da sociedade (p. 1045).
Diante das diversas possibilidades de se correlacionar o ensino de ciências com concepções de qualidade da educação e da necessidade de se avançar nesta discussão, consideramos importante trazer, para o debate, os reais protagonistas do cenário educacional, procurando compreender como professores das ciências de diferentes realidades educacionais e das diferentes disciplinas científicas constroem discursos sobre as políticas educacionais, a ciência, o currículo, a avaliação, os objetivos educacionais, as TIC e como relacionam estes discursos à qualidade da EC que realizam ou sonham realizar. Assim, investigamos a qualidade da educação científica a partir da compreensão da educação como mediação sociocultural e da análise do discurso de agentes do ensino de ciências em diferentes contextos educacionais.
Neste capítulo, apresentamos a síntese de quatro estudos desenvolvidos no âmbito de um projeto[2] de pesquisa em rede, que tiveram como objeto as perspectivas de qualidade de professores de nível médio das redes privada, estadual e federal do Rio de Janeiro. A partir da análise bakhtiniana do discurso, realizada com a ajuda de um dispositivo elaborado especificamente para tal, foi possível apreender uma diversidade de perspectivas sobre a educação científica e correlacioná-las a sentidos de qualidade.


O quadro teórico-metodológico: a perspectiva sociocultural

A perspectiva sociocultural (WERTSCH, 1993) nos pareceu adequada para problematizar a questão da “qualidade” tendo em vista a natureza polissêmica dessa palavra, isto é, o quanto a mesma depende da atribuição de sentidos pelos sujeitos. Ao propor a aproximação à ação humana a partir dos gêneros discursivos como instrumentos mediadores, Wertsch (1993) estabelece diálogo com constructos analíticos que possam ir além dos cenários psicológicos, relacionando as atividades mentais à linguagem. Em sua obra, o autor inicia esta expansão relacionando o funcionamento mental com a linguagem e busca na translinguística de Bakhtin os constructos para elaboração de uma teoria sociocultural.
Bakhtin (2004) buscou compreender as questões epistemológicas das ciências humanas e sociais, considerando a linguagem como elemento organizador da vida mental e fundamental na formação do sujeito histórico-social. Assim, a linguagem não exibe apenas sua propriedade de veículo de transmissão de conteúdo, mas possui uma dimensão constitutiva de formas de pensar e significar.
Na contramão das grandes correntes teóricas da linguística que predominavam até então, Bakhtin (2004) considerou o enunciado como produto da interação social e como a verdadeira unidade de análise da comunicação verbal. O conceito de voz em Bakhtin (2003) não se refere a sinais auditivo-vocais, mas a questões mais amplas da perspectiva do sujeito falante, seu horizonte social, sua intenção e sua visão de mundo. Este conceito enfatiza o pressuposto bakhtiniano de que a atividade mental a exprimir, a estrutura da enunciação e sua elaboração estilística são de natureza sociológica (BAKHTIN, 2004).
Para analisar as enunciações buscando a construção de sentido é preciso recorrer à noção de dialogia, conceito-chave em Bakhtin (2004), que pressupõe que em todo enunciado há, pelo menos, duas vozes, mesmo que não haja interação face a face. Quando um sujeito fala, o faz referente a algo ou a outra voz. Mesmo que um enunciado não esteja respondendo de alguma maneira a enunciados anteriores, ele antecipa as respostas de outros enunciados que se seguirão. O interesse de Bakhtin (2004) pela direcionalidade do enunciado envolve tanto o interesse por quem produz o enunciado como a quem esse enunciado é dirigido. Nesse sentido, o ato de compreender não é apenas decodificar um conteúdo, mas requer do interlocutor uma ação ativa e reativa, porque “para cada palavra da enunciação que estamos em processo de compreender, fazemos corresponder uma série de palavras nossas” (BAKHTIN, 2004, p. 132). Quanto maior o número e o peso dessas palavras, mais profundo e substancial será nosso entendimento.
Os enunciados e os significados dos enunciados estão intrinsecamente inseridos num contexto sociocultural e, por isso, são permeados de influências socioculturais: pela direcionalidade dos enunciados (para quem falamos ou a quem nos referimos), pelo contexto em que esses enunciados são produzidos (na escola, em casa) e pela função que esses enunciados desempenham (uma petição, uma carta pessoal). Bakhtin (2003) abordou a situacionalidade do enunciado no conceito de gênero discursivo. O gênero discursivo é assim, um tipo de enunciado que se caracteriza em função de situações típicas de comunicação verbal, ao contrário da linguagem social que é um tipo social de fala associada a um extrato específico da sociedade (segundo profissão, faixa etária, etc.). Logo, a produção de todo enunciado implica a apropriação de pelo menos uma linguagem social e um gênero discursivo, porque esses tipos sociais de fala estão situados socioculturalmente (WERSTCH, 1993). Sendo de natureza social, a enunciação é, portanto, ideológica e não existe fora de um contexto social.
A resposta à pergunta “quem está realizando o ato da fala?” (WERTSCH, 1993, p. 83) implica, do ponto de vista bakhtiniano, sempre pelo menos duas vozes, o que acentua a produção do significado não no indivíduo isolado, mas na vida grupal. A compreensão de como as linguagens sociais e gêneros discursivos se relacionam na composição dos enunciados é indispensável para a análise de como diferentes vozes se põem em contato.
O conceito de dialogia responde pela relação entre o falante e o enunciado de outros. Assim, fazer uso da linguagem requer apropriar-se das palavras do outro e torná-las, em parte, nossas. Isso porque não existe uma linguagem neutra e impessoal, disponível para ser usada, mas para torná-la própria é preciso tomá-la dos contextos e das intenções dos outros. Mais especificamente, o que define apropriação é a ação que vai além do contato com outras vozes ou com outros discursos, é “trazer algo para o interior de si mesmo e fazê-lo próprio” (WERTSCH, 1999, p. 92) acrescentando intenção semântica e expressividade próprias, dando voz à sua manifestação discursiva e promovendo sua reconstrução. Por este processo, o sujeito amplia o domínio de um discurso, incorporando novos horizontes de compreensão e de participação.
Na relação do falante com seu próprio enunciado, Bakhtin (2003) chama atenção para o conteúdo semântico referencial e o aspecto expressivo do sujeito que, para Wertsch (1993), seria equivalente à ideia de perspectiva ou de ponto de vista sobre o conteúdo do enunciado. Segundo o autor, a partir destes processos dialógicos é possível encontrar diferenças entre os enunciados de uma linguagem social e os de outra.
             Na construção de sua perspectiva sociocultural, Wertsch (1993) defende, para  além da relação com a linguagem enquanto ferramenta mediadora da vida mental, uma perspectiva interdisciplinar que possa estabelecer contato frutífero com constructos analíticos das ciências sociais e ciências humanas. O autor aponta as ciências sociais como um caminho para a expansão da teoria sociocultural e inicia esta aproximação ao considerar os conceitos de capital cultural e de reprodução (BOURDIEU apud WERTSCH, 1993) como ferramentas que têm “implicações óbvias para uma explicação de gêneros discursivos que dão forma ao discurso e ao pensamento” (p. 168).
Procurando avançar neste sentido, buscamos expandir o quadro teórico bakhtiniano, incorporando constructos da sociologia da educação à perspectiva sociocultural por meio do pensamento de Bernstein (1996), referencial do quarto estudo. Encontramos na teoria do discurso pedagógico de Bernstein um referencial potente e pertinente, capaz de dar suporte à compreensão das relações que queremos investigar. Ao realizar uma análise crítica do currículo e do processo de escolarização, Bernstein colocou em questão o papel da educação na reprodução cultural das relações de classe, tornando evidente que a pedagogia, o currículo e a avaliação são formas de controle social (MAINARDES; STREMEL, 2010). A partir dessa crítica, o autor constrói uma teoria complexa, com base, principalmente, nos conceitos de código, dispositivo pedagógico, discurso pedagógico, nos princípios de classificação e enquadramento e no processo de recontextualização.
Sua teoria do dispositivo pedagógico examina o processo pelo qual uma disciplina é transformada para compor o conhecimento escolar, o currículo, os conteúdos e as relações a serem transmitidas. Este dispositivo se constitui de um conjunto de regras discursivas hierarquicamente relacionadas, classificadas em distributivas (que se aplicam ao campo intelectual do sistema educacional), recontextualizadoras e avaliativas. Essas regras, que regulam a comunicação pedagógica, estão relacionadas a três diferentes campos: o campo de produção do discurso, o campo recontextualizador e o campo de reprodução do discurso. Através das regras discursivas, o dispositivo pedagógico fornece a gramática intrínseca do discurso pedagógico que, para o autor, é muito mais que o conteúdo a ser ensinado ou que uma seleção de enunciados. O discurso pedagógico seria um princípio de recontextualização de outros discursos que serão seletivamente transmitidos e adquiridos.
Os processos de recontextualização consistem na passagem de um discurso de seu contexto original de produção para um outro contexto, onde é modificado, relacionado a outros discursos e assim, reposicionado. Essa movimentação produz uma mudança no discurso por conta da influência da ideologia, sujeita a diferentes visões de mundo e aos interesses especializados e/ ou políticos dos agentes recontextualizadores, cujos conflitos estruturam o campo recontextualizador, intermediário entre o campo de produção e o campo de reprodução do discurso, as escolas. Entre os campos recontextualizadores, destacam-se o Estado e suas agências e o campo recontextualizador pedagógico, constituído por departamentos e faculdades de educação, suas pesquisas, publicações, leitores e editores. Quando um discurso é apropriado por agentes dos campos recontextualizadores, em geral ele é deslocado e depois realocado segundo um novo posicionamento ideológico. Uma vez no campo de reprodução, quando se torna ativo no processo pedagógico, o discurso sofre novas transformações e reposicionamentos.
O discurso pedagógico resultante destes processos é visto não apenas como texto ou fenômeno linguístico, mas articulado às práticas e identidades dos sujeitos, submetido a mudanças e constituído enquanto repertório que conforma as relações sociais. O discurso pedagógico seria assim, um conjunto de normas que regula a produção, reprodução, distribuição, transmissão, aquisição, avaliação e inter-relação dos textos, incluindo qualquer representação expressa pela fala, pela escrita, visualmente, espacialmente, nas posturas assumidas, na maneira de vestir, as quais expressam materialmente as relações sociais. Não há como identificá-lo com o conhecimento das matérias, já que se configura pela ligação de dois discursos: o discurso instrucional e o discurso regulativo. O discurso instrucional se refere aos conhecimentos mais específicos (o que e como transmiti-los) enquanto o discurso regulativo tem cunho ideológico (discurso moral e de transmissão de valores e identidades), é regulador do discurso instrucional e determinante na ordem social.
            Nos primeiros três estudos apresentados a seguir, utilizamos um dispositivo analítico que procura refletir a apropriação teórica da obra de Bakhtin por meio das seguintes etapas: (i) Identificação do enunciado: a própria alternância entre os sujeitos falantes é suficiente para identificar o enunciado, ou seja, o enunciado inicia-se no momento em que o falante toma a palavra para si e finaliza-se no momento em que este termina o que gostaria de dizer, permitindo que o outro também fale; (ii) Leitura preliminar do enunciado: nesta etapa tem-se o primeiro contato com os enunciados a serem analisados, no sentido de identificar preliminarmente seus elementos linguísticos (estilo, construção composicional, unidade temática, relação com o falante/outros participantes, conclusibilidade) e fazer uma articulação prévia entre o material linguístico, as questões de pesquisa e os conceitos bakhtinianos; (iii) Descrição do contexto extraverbal: a partir da leitura preliminar e da articulação prévia das questões de pesquisa aos conceitos bakhtinianos, é realizada uma investigação do contexto extraverbal para identificar, dentre os vários elementos, aqueles que mais contribuirão para a análise. Esses elementos são então descritos e articulados com vistas a estabelecer o horizonte espacial comum dos interlocutores, seu conhecimento e compreensão da situação, a avaliação comum dessa situação, o momento social e histórico em que ocorre e a rede de enunciados a que se relaciona. Nesta etapa também são trazidos os contextos individuais dos sujeitos enquanto autores-pessoas, como por exemplo, formação, tempo de atuação profissional, instituição em que atua, idade, região e Estado da federação a que pertence, etc. Estes dados poderão ajudar a compor o entendimento dos enunciados, considerada a relação de aproximação entre ambos; (iv) Análise do enunciado: consiste em articular os elementos linguísticos, o contexto extraverbal e os conceitos bakhtinianos envolvidos para responder as questões de pesquisa. Na interpretação das perspectivas dos professores, levamos em consideração tanto a situação atual de enunciação e portanto a direcionalidade dos enunciados quanto aspectos de sua formação e do contexto educacional e sociocultural específico ao qual o professor se reportava. Nessa etapa, a descrição do contexto extraverbal poderá ser revista e ampliada, caso seja necessário buscar mais elementos para melhor compreensão do enunciado.
No quarto estudo, que considera os conceitos teóricos de Bernstein como referencial, realizamos a análise do discurso dos professores entrevistados em duas etapas: (i) localizamos processos de recontextualização das políticas curriculares quando os professores se manifestaram em relação aos documentos oficiais e aos processos de seleção e legitimação do conhecimento escolar; e processos de recontextualização de outros discursos correntes no meio educacional quando relacionavam aspectos pedagógicos, políticos, sociais, educacionais à qualidade; (ii) buscamos descrever como, ao serem realocados de um contexto para outro, por meio de processos de recontextualização, estes discursos dão origem ao discurso pedagógico de cada professor e tecem sentidos de qualidade para a educação científica.

Perspectivas de professores de nível médio sobre qualidade da educação científica

Apoiados na perspectiva sociocultural, analisamos inicialmente, as enunciações de professores das ciências da natureza e de matemática participantes de um grupo focal que promoveu a discussão sobre a qualidade do ensino de ciências. Nove professores de nível médio que lecionavam em escolas públicas e privadas do Rio de Janeiro (cujos nomes são fictícios) participaram deste estudo: um professor de química de uma escola privada (Paulo); um professor de química de uma escola prisional, uma escola pública e uma privada (Júlio); um professor de matemática de uma escola pública (Ronaldo); um professor de física de uma escola pública (Marcelo); uma professora de física de uma escola particular (Gabriela); uma professora de química de uma escola técnica pública (Fátima); uma professora de matemática de uma escola pública (Tatiana); um professor de biologia de uma escola pública (César) e uma professora de biologia de uma escola pública de formação de professores (Ana).
A partir da transcrição da gravação em vídeo, analisamos os enunciados de todos os professores, - considerados como sua fala ou turno, cada vez que se dirigiam à mediadora ou ao grupo -, com o objetivo de identificar os sentidos atribuídos por eles à qualidade da EC. Como a mediadora sugeriu inicialmente um tema amplo e em seguida o debate sobre a qualidade, que como já vimos anteriormente é uma palavra de caráter polissêmico, os professores acabaram elegendo temas diversos em ambos os momentos da atividade. Por meio de enunciados longos, abordaram, em geral, mais de um tema, que consideramos como subtemas dos temas mais amplos. Na primeira etapa da análise foi necessário, assim, identificar os subtemas que compunham o conteúdo semântico referencial dos enunciados dos professores. Buscamos então, a relação do falante com seu enunciado, ou seja, a identificação das vozes dos professores, considerando-as como perspectivas referenciais (WERTSCH, 1993) sobre aquele(s) subtema(s). Para identificá-las, inferimos qual era o ponto de vista do falante, como e por que o tema foi relacionado com qualidade. Ainda que não aparecesse a palavra qualidade nas falas dos professores, buscamos identificar a posição valorativa dos professores frente ao ensino de Ciências e Matemática, bem como à educação stricto sensu. 
Para defenderem suas perspectivas, os professores construíram seus discursos a partir do diálogo com diversas linguagens sociais. A linguagem social que parece dominante, quando se referem aos problemas curriculares, de aprendizagem dos alunos e à prática pedagógica, é o discurso que circula na sua escola, no grupo social que compartilha a atividade de ensinar naquele determinado contexto educacional. Diferentes realidades educacionais moldaram as linguagens sociais dos professores e, consequentemente, suas concepções sobre o currículo, finalidades da educação e qualidade.
Embora possa haver consensos, essa diferença se desdobra, em geral, em tensões entre as perspectivas. Assim, foi possível observar que Paulo, professor de uma escola privada, questiona menos o currículo e vê a qualidade do seu ensino como sinônimo de melhor desempenho do aluno no vestibular. Este professor se exime de uma reflexão mais profunda que, de fato, poderia levá-lo a questionar currículo, avaliação, políticas educacionais, vestibular etc. Fátima diferencia sua voz pelo pertencimento a uma escola técnica pública, que considera superior em termos de qualidade devido à seleta clientela que recruta. Já entre os professores de escolas públicas, percebemos diferentes vozes que nos pareceram diferenciadas pelo tempo de experiência profissional.
A falta de qualidade do ensino de ciências está ligada, para a maioria, ao anacronismo do currículo e da escola frente ao cotidiano dos alunos, sendo a presença avassaladora da tecnologia no ambiente social o fator que mais o deixa evidente. Na discussão, foi possível perceber uma tensão entre os professores que acreditam que tecnologizar o ensino de ciências o salvaria desse anacronismo e outros que afirmam que apenas isso não bastaria. Para os que defendiam a inserção tecnológica, a defesa da educação científica com uso das tecnologias foi frequente, mas também esteve presente a ideia de se abordarem os artefatos tecnológicos como contexto para a aprendizagem, assim como prescrevem os PCNEM.
Perspectivas sobre a questão curricular também foram tensionadas entre seguir o currículo visando os exames oficiais ou mudar o currículo para atingir objetivos alternativos. Nesta tensão, houve a preocupação em favorecer a aprendizagem de Ciências, mas também a socialização dos alunos e a construção de um conhecimento útil à sua realidade. A discussão foi polêmica entre o grupo, que entendeu que estas possibilidades poderiam levar a finalidades distintas: à formação científica exclusivamente voltada para o ensino superior ou a uma formação científica útil e de qualidade para todos. Entre os que recontextualizam o currículo oficial, Júlio diz-se comprometido com um ensino de ciências de qualidade, mas que se afasta do cumprimento de um mesmo currículo ou metodologia de ensino para todos os alunos, independentemente do contexto. Já Marcelo não segue o currículo porque, para ele, os alunos da escola pública não conseguem ou não podem aspirar ao ensino superior, visto que a qualidade do ensino que recebem não lhes permite tal acesso e que a meta final desses alunos é o mercado de trabalho.
Com relação ao trabalho docente, percebemos uma tensão entre a prática que endossa a ausência de qualidade, caracterizada pela falta de mobilização e comprometimento, e outra que se coloca como militante pela qualidade, apesar da escola, do salário, das condições de trabalho. Diante da situação de sucateamento do sistema educacional, relatada por diversos professores do grupo, os professores se debatem entre a impotência para resolver os problemas que se apresentam e a atitude que assumem para si quanto à necessidade de mudança. Estes acreditam que o nível de comprometimento do professor com a aprendizagem dos alunos, ao refletirem sobre sua prática docente e se utilizando de novas metodologias, pode garantir a qualidade do ensino. Essa visão atribui, ao indivíduo, o alcance da qualidade, sem reconhecer que um real interesse do poder público em investir na qualificação e remuneração dos profissionais da educação possibilitaria o comprometimento de um número expressivo de professores.
Para Ronaldo e César, que têm mais tempo de magistério, o sucesso seria atingido pelo interesse do aluno, estimulado pelo ensino anterior à Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971). Ao dialogarem com o discurso oficial daquela época, em que a maioria dos alunos pertencia à classe média e, em função disso, trazia capital cultural diferente dos alunos de hoje, esses professores não reconhecem a seletividade que estava embutida no sistema educacional e, por isso, são capazes de valorizá-lo. Ao defender o jubilamento como prática que poderia contribuir para a qualidade do ensino, Ronaldo parece aceitar a exclusão como resultado educacional, sem problematizar o contexto sociocultural e o sistema meritocrático em que este tipo de prática se insere.
Ao mesmo tempo, Ronaldo e César denunciam o recrutamento de estudantes de todos os níveis e interesses como a causa da falta de qualidade do ensino atual, sem perceber que o sistema deveria dar as condições para lidar com este público diversificado e muito mais amplo. Ana também culpabiliza a inclusão de alunos, antes excluídos, pela queda da qualidade do ensino, não reconhecendo, nessa inclusão, um avanço da qualidade da educação no que diz respeito à democratização das oportunidades de acesso escolar e de possível ascensão social.
O fracasso na aprendizagem de ciências se daria, segundo as diferentes vozes dos professores, pela falta de base, de interesse ou de prazer. Estas questões, envolvidas na complexidade do ato educativo e originadas no contexto sociocultural mais amplo, precisam ser aprofundadas. O desinteresse dos jovens pelas ciências da natureza tem assumido dimensões preocupantes em vários países. Para Fourez (2003), os educandos não se interessam por estudos científicos impostos pelo sistema educacional - que visam a interesses apenas da comunidade científica ou do mundo industrializado - porque os percebem como desarticulados dos problemas de sua realidade. Além do desinteresse, Lemke (2006) aponta a própria exclusão produzida pelo ensino de ciências ao longo das últimas décadas, por ter sido impulsionado pelo interesse político na formação da força de trabalho técnica e cientificamente preparada.
No que diz respeito às políticas educacionais, a política de aprovação automática do município do Rio de Janeiro, vigente até 2008, foi muito mencionada e criticada. A política do governo do Estado do Rio de Janeiro de distribuição de laptops aos professores também foi mencionada e igualmente criticada. A perspectiva dos professores em relação a estas políticas pode ser considerada um ponto positivo na medida em que demonstraram um posicionamento crítico em relação à associação governamental entre elas e a qualidade do ensino.
Embora os professores não tenham mencionado explicitamente os PCNEM, foi possível perceber que os conceitos fundamentais que alicerçam o ensino de ciências (contextualização, interdisciplinaridade e competências e habilidades) estiveram presentes nos enunciados de Paulo, Júlio, Gabriela, Fátima e Tatiana. Relacionar os conteúdos com o cotidiano dos alunos, com a tecnologia ou a atualidade passou a ser um objetivo relevante para o professor das ciências. Entretanto, não foram percebidos questionamentos em relação a esse conceito que implicassem diferentes abordagens do mesmo, como, por exemplo, a ideia de ir além do entendimento de um fenômeno presente na realidade, abordando suas dimensões sociais, políticas e culturais, como sugere Santos (2007).
A tensão entre seguir o currículo das disciplinas científicas, tal como previsto pela legislação ou pela escola, e alterá-lo de acordo com determinada realidade educacional ou social dos alunos permeou o discurso dos professores pesquisados, mesmo que de modo diferenciado entre eles. Enquanto alguns criticaram o acesso ao nível superior de ensino como a meta educacional a ser alcançada, outros defenderam a contextualização e atividades alternativas como atributos positivos e motivadores do processo ensino-aprendizagem. Os primeiros entendem estas práticas como algo negativo que pode comprometer a qualidade do ensino, dada a enorme quantidade de conteúdos a serem abordados nas disciplinas científicas.
Uma conclusão da análise aponta para a recorrência do sentido da falta de qualidade atribuída à educação pública e privada e, em particular, ao ensino de ciências. Esta falta de qualidade foi atribuída a problemas pedagógicos e políticos. Por meio da denúncia da falta de qualidade, o discurso dos professores deixa pistas sobre o que seria a suposta qualidade. Em geral, os professores investigados se manifestaram sobre os elementos pedagógicos da EC se utilizando da linguagem social típica de sua vivência escolar, em enunciados apartados daqueles nos quais se referiam aos aspectos políticos, construídos em diálogo com a legislação educacional. Percebemos que, embora os professores reconheçam relações entre a educação e a esfera política, não parecem reconhecer o caráter político inerente ao ato educativo, ou à educação científica em particular, manifestado em suas finalidades, proposta curricular, metodologias etc. Também não percebemos a preocupação com sua implicação na reprodução ou transformação da sociedade.
Enquanto alguns professores atribuíram o problema da qualidade da educação a questões relacionadas às más condições de trabalho, à desvalorização docente, aos baixos salários e ao sucateamento do sistema educacional como um todo, na fala de outros, ainda que inseridos nesta mesma realidade, percebemos a ilusão de que a qualidade pode ser atingida por iniciativas individuais. Também percebemos no discurso político dos professores, a dicotomia qualidade versus quantidade, envolvida na questão da qualidade da educação. Enquanto alguns permanecem com o discurso conservador que privilegia a qualidade para poucos em detrimento da democratização do acesso à escolaridade, outros, mesmo reconhecendo que a massificação desse acesso alterou num primeiro momento a qualidade do ensino, apostam na qualidade da educação como direito de todos.
Apesar das diferenças entre os contextos educacionais e entre as linguagens sociais com as quais os professores dialogaram, podemos apontar um sentido negativo de qualidade, atribuído por todos eles, à educação científica. Concluímos que a complexidade da nossa sociedade incide diretamente sobre todas as tensões e perspectivas identificadas, se desdobrando nos sentidos que os professores atribuem à educação, ao ensino de ciências e a todos os elementos que o conformam. Ao lado de outros problemas sociais, os problemas da educação se agravam em meio ao descaso com que ela ainda é tratada pelos que poderiam e deveriam agir em prol da melhoria de sua qualidade.


Perspectivas sobre a qualidade do ensino de ciências na educação profissional

Desde o segundo mandato do presidente Lula e ao longo do governo Dilma, a formação profissional, no âmbito federal e estadual, tem sido implementada como política de promoção da qualidade da educação. Medidas políticas e modalidades de oferta para os diversos níveis de ensino têm assinalado a centralidade da formação profissional nesse período.
Historicamente, a educação profissional (EP) vem se constituindo em um campo no qual estão em disputa interesses governamentais, empresariais, de instituições internacionais e, em particular, da esfera acadêmica, que luta para reverter a concepção adestradora e tecnicista profissional que, de um modo geral, desde muito caracteriza os processos formativos profissionais no Brasil. A preocupação da comunidade acadêmica em relação à EP que nesta década recebe atenção prioritária do governo, é a forma como ela vem se constituindo, tanto pela manutenção de seu caráter privado (até 2008, cerca de 80% da educação profissional estava nas mãos da iniciativa privada) como por sua orientação pela Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de nível Médio (EPTM), que parecem insistir em uma regressão ao Decreto 2208/97.
A problemática que motiva o presente estudo, portanto, é tecida pelos embates políticos vivenciados nas últimas décadas pela EP no cenário educacional brasileiro. Nesse embate, circulam referenciais de qualidade que norteiam a educação científica e orientam as práticas dos docentes que atuam neste contexto educativo, entre eles, a concepção de educação politécnica, que possibilitaria o acesso à cultura, à ciência e ao trabalho, eixos centrais da formação integral, concebida por vários autores como um salto de qualidade para a EP.
Realizamos entrevistas com seis professores de nível médio de duas escolas públicas de educação profissional do Rio de Janeiro (quatro de Química, da escola A e dois de Biologia, da escola B), a fim de apreender sentidos atribuídos à qualidade da educação científica. A partir de uma análise “bakhtiniana” dos enunciados dos professores foi possível chegar a uma diversidade de perspectivas de qualidade, dentro de um contexto educacional tão particular como o da EP. Essa diversidade é maior na escola A, mesmo quando consideramos um mesmo campus. Na escola B, encontramos mais aproximações do que afastamentos entre as perspectivas de qualidade enunciadas pelos sujeitos entrevistados. Essa síntese é capaz de mostrar que a atuação do professor na EP não produziu necessariamente uma visão hegemônica de qualidade para a educação científica, assim como o contexto institucional não produziu uma única visão de qualidade em cada instituição.
A pesquisa permitiu vislumbrar diferenças no processo de apropriação das orientações político-pedagógicas pelas instituições educacionais investigadas, sinalizadas pela maior dispersão entre as perspectivas de qualidade encontradas na escola A em relação à escola B, ainda quando levamos em conta um mesmo campus. Os professores da escola A reconheceram que não conheciam o projeto pedagógico da escola, não utilizavam e não havia discussões coletivas. As perspectivas de qualidade encontradas são, assim, fruto da assimilação de um possível senso comum sobre o conceito de formação profissional que circula nas instituições educacionais, ancorado em legislações passadas, na formação acadêmica do professor ou até na mídia. Além disso, alguns criticaram o direcionamento pedagógico da escola e vários outros aspectos curriculares e ideológicos. A relação discursiva dos professores da escola B com o projeto político pedagógico é completamente diferente. Ambos mencionaram aspectos do projeto, sempre se manifestando positivamente. Um deles teceu elogios e se disse fã da escola.
Essa diferença nos contextos institucionais das escolas pode estar na origem da maior diversidade de perspectivas entre os professores da escola A. Enquanto a escola B promove a discussão do currículo, do projeto pedagógico e da legislação, permitindo o embate de perspectivas, mas também a construção coletiva e a adesão dos professores a um projeto comum, a escola A não promove atividades que levem ao compromisso com um projeto coletivo. Consideramos um caminho importante tomar esse resultado como uma hipótese a ser perseguida em estudos futuros.
Diante dos nossos achados, também é possível considerar que a formação acadêmica tenha influenciado ideologicamente a visão de Ciência enunciada pelos professores entrevistados. Na escola A, os professores com formação pós-graduada em Educação apresentaram uma visão crítica à ciência positivista, enquanto aqueles que não tinham tal formação, não se posicionaram criticamente. Entretanto, essa relação não se confirma na escola B, já que o professor crítico não tem este nível de formação. Interpretamos que o papel que a formação acadêmica desse professor tem em moldar sua perspectiva de qualidade foi sobrepujado pelo compromisso do professor com o projeto pedagógico da escola. A discussão coletiva, o compartilhamento de ideais e de valores (neste caso, críticos) moldaram as perspectivas de qualidade da educação científica (neste caso específico, a visão de ciência) igualmente ou mais fortemente do que sua formação acadêmica.
Em relação às finalidades do ensino de ciências, foi possível perceber a complexidade dialógica que pautou a construção dos sentidos apreendidos, envolvendo confrontos de atribuições valorativas com as demandas efetivas do contexto de trabalho e com as expectativas de um ensino de qualidade alinhadas com outros discursos. Identificamos dialogias tecidas a partir de pontos de contato com os discursos circulantes na escola, com os discursos oficiais, institucionais e acadêmicos.
Observamos, também, diferentes pontos de partida que os professores elegeram para tecer a sua perspectiva de qualidade. Alguns tomaram por referência as ações da própria instituição para legitimar ou não as finalidades do ensino, respondendo ativamente com críticas, comparações, acordos e desacordos. Notamos pouca referência às políticas públicas para a EPTM na atual conjuntura social, seja para indicar divergências entre os sentidos de educação profissional oficial, docente e institucional ou indicar o conhecimento sobre sua influência na definição de finalidades educacionais. Outros rememoraram suas trajetórias acadêmicas e profissionais para dar sentido ao discurso sobre a sua prática e a partir daí projetarem suas ambições para a formação técnica.
Em relação às perspectivas de qualidade do ensino de ciências no âmbito da EP, conseguimos captar uma tendência no sentido da defesa de um ensino de ciências crítico-reflexivo que instigue o questionamento diante do conhecimento. O ensino de ciências também foi problematizado mais radicalmente pelos professores a partir de questões políticas, sociais e históricas que tocam a soberania e a não neutralidade da ciência engendradas pelas relações de poder presentes nos contextos de sua produção.
O exame das aproximações e afastamentos entre as perspectivas de qualidade dos professores de uma mesma instituição apontou mais aproximações no contexto da escola B. Uma vez que o conceito teórico de formação integral, defendido pelos docentes enquanto qualidade, fundamenta o projeto político pedagógico da escola B, é fácil ver a aproximação. Se levarmos em conta que essa mesmas bases teóricas foram apropriadas pelo Documento Base para a EPTM (2007), ainda que saibamos da existência de sentidos contraditórios que possam habitar uma mesma palavra, é possível ver também aí, aproximações com o discurso oficial do governo. Além disso, encontramos nessa escola, indícios de um esforço coletivo que aproximou as perspectivas de um sentido próprio para a qualidade, mesmo que as apropriações incorporem ressignificações dos valores, intenções e interesses dos sujeitos envolvidos.
No primeiro estudo, realizado com docentes de nível médio regular, foi consensual e recorrente o sentido da falta de qualidade atribuído à educação científica. Já os professores da EP construíram sentidos para a qualidade a partir dos valores que defendiam para o seu ensino, produzindo sentidos para as suas práticas em meio a embates e buscas pela qualidade que idealizavam. Talvez na voz desses docentes, tenhamos identificado uma pista que afasta as perspectivas de qualidade da educação pública de nível médio daquelas da qualidade da EP. Embora o maior investimento do governo nesta modalidade nos últimos anos possa explicar parte da diferença, acreditamos que o critério único de qualidade imposto recentemente pelo Ensino Nacional do Ensino Médio (ENEM) ao ensino médio regular pressiona muito mais as escolas públicas de nível médio do que as de educação profissional. Tomando o exame oficial como único critério de qualidade, os professores do nível médio regular são levados a avaliar seu ensino nas escolas públicas como totalmente insatisfatório.
O direito ao conhecimento e à reflexão sobre o conhecimento, defendido para a formação técnica de nível médio por pesquisadores da educação profissional, foi notado tanto na perspectiva que defendeu a inserção no mercado de trabalho como finalidade educacional primeira quanto na perspectiva que incluiu, além dessa, finalidades sociais mais amplas. Isto pode ter derivado, nos contextos investigados, de dois pontos de vista: daquele que é fruto de mudanças na concepção de educação, seja pela escolarização ampliada ou por questões ideológicas e culturais ou daquele ponto de vista que já assimilou o fato de a sociedade capitalista contemporânea necessitar de técnicos que, diante das novas configurações científicas e tecnológicas do mundo produtivo, também estejam preparados para refletir e decidir. Isso não quer dizer que esteja tudo resolvido, até porque este caminho não atende à formação para a cidadania. Há de se ficar em sentinela para que outras formas de EP integradas ao ensino médio, por exemplo, a subsequente e as parcerias do governo com o sistema S não representem para a rede federal de ensino, um retrocesso à concepção de educação profissional marcada pela dualidade entre cultura técnica e cultura geral (FRIGOTTO, 2009). Ou ainda, como nos alerta Ramos (2008), que não sejamos iludidos por um discurso “ideológico e dispersivo intrínseco à dinâmica do capitalismo no qual os sujeitos serão empregáveis dependendo de sua carteira de competências e de suas qualificações” (p. 71), uma vez que há contraposições em relação à lógica que lineariza a relação entre formação e emprego.
Se olharmos para nossos resultados como um todo, foi possível identificar dois polos: de um lado, a educação científica como preparação da força de trabalho e de outro, como formação integral, para todas as dimensões da vida. Mas consideramos que foi possível avançar, justamente quando conseguimos captar nuances dessas perspectivas. Por meio do escrutínio que realizamos, chegamos a visões de qualidade particulares, que nos mostraram a importância dos docentes enquanto protagonistas do processo educativo, capazes de conformar a qualidade, deixando claro que a qualidade da educação não pode ser vista apenas por índices oficiais como o ENEM e o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB). Nossos resultados deixaram patente o quanto esta visão reduz a complexidade da qualidade, quando os confrontamos com o ranking do ENEM 2011 no estado do Rio de Janeiro, segundo o qual as escolas A e B ocupam praticamente a mesma posição! O sentido dessa classificação para a sociedade em geral é o de que essas escolas supostamente apresentam a mesma qualidade. A divulgação recente deste dado nos proporcionou, assim, um contraponto evidente ao estudo que realizamos. Afinal, conseguimos mostrar que a qualidade está longe de ter o mesmo sentido para os docentes dessas duas escolas.
Outro resultado que merece atenção foi a tendência dos professores entrevistados de cobrarem dos gestores das escolas e não das políticas para a EPTM por ações e posicionamentos mais efetivos para ensino técnico. Paralelamente, notou-se um total silenciamento das tensões envolvidas na atual política de expansão da educação profissional e da problematização das propostas oficiais de governo na produção de sentidos para a qualidade. Consideramos esse quadro preocupante porque as perspectivas enunciadas, sobretudo no contexto da escola A, que participa efetivamente desse movimento de expansão, se circunscrevem à realidade institucional imediata e deixam de questionar o contexto político mais amplo. Reconhecemos que posicionamentos críticos são dificultados por refletirem a luta contra visões hegemônicas vivenciadas no sistema capitalista e acentuadas por políticas neoliberais.


Perspectivas sobre a utilização das tecnologias da informação e comunicação e a qualidade do ensino de ciências

Desde a década de 60, a educação geral e a EC, em particular, têm sido vistas como fatores de sustentação e aceleração do desenvolvimento científico-tecnológico do país. Por parte do governo, a aspiração de desenvolver o país tendo a educação como um fator crucial de melhoramento das forças produtivas para atender às novas exigências do mundo do trabalho; por parte da população, o desejo de se beneficiar dos recursos educativos e integrar-se ao novo momento do país, que crescia e se industrializava.
Como as práticas da educação formal então vigentes não atendiam às novas demandas produtivas, imprimiu-se certa dose de cientificismo à prática docente, utilizando-se o discurso científico e as técnicas de ensino para legitimar a institucionalização dos especialistas em educação e profissionalizar o ensino. Dessa forma, generaliza-se na educação um movimento de incorporação de técnicas administrativas, psicológicas e pedagógicas. Nesta pedagogia, dita tecnicista, o centro de ensino não é mais o professor, nem mais o aluno, mas as técnicas (SAVIANI, 1984). A partir delas, reorganiza-se o processo educativo no sentido de torná-lo objetivo e operacional. O ensino passa a burocratizar-se mediante planejamentos, operacionalização de objetivos, instrumentos para medir comportamentos observáveis, mensuráveis e controláveis. Dissemina-se o uso da instrução programada, das máquinas de ensinar, testes de múltipla-escola, tele-ensino e múltiplos recursos audiovisuais. Na década de 80, inicia-se oficialmente a introdução da informática na educação por meio do projeto Educom, que projeto visava, além da melhoria da aprendizagem, a familiarização dos estudantes com a informática, tendo em vista o mercado de trabalho.
Saltando das demandas econômicas das décadas de 60, 70 e 80 para a atual sociedade globalizada marcada pela inserção das TIC, vale perguntar de que forma as atuais demandas redefinem o papel da escola a fim de produzir uma educação de qualidade. A reforma educacional vigente desde o final da década de 90, ao colocar a centralidade do conhecimento e da tecnologia nos processos de produção e organização da vida social, institui um novo paradigma, em que as competências desejáveis ao pleno desenvolvimento humano aproximam-se das competências necessárias à inserção no processo produtivo. Admitindo-se tal correspondência entre as competências exigidas para o exercício da cidadania e para as atividades produtivas, recoloca-se o papel da educação como elemento de desenvolvimento econômico e social.
Se a ciência e a técnica sustentaram as premissas da pedagogia tecnicista visando à melhoria da qualidade da educação a fim de atender às demandas do mundo do trabalho, a inserção das TIC na educação pelas políticas educacionais vigentes traz a renovação desse discurso e desencadeia outros discursos. Esses discursos compõem o que Felinto (2005) denominou de “imaginário tecnológico”, ou seja, “conjunto de representações sociais e fantasias compartilhadas que informam nossas concepções sobre as tecnologias” (p. 7). Uma das principais representações concebe as TIC como rendição dos problemas educacionais, capazes de transformar, de forma mágica, o processo tradicional de ensino em verdadeiras aulas-espetáculo e, desse modo, combater o desinteresse dos alunos frente aos conteúdos. Assim, a qualidade da educação seria alcançada pelo “emprego de recursos tecnológicos que promoveriam a atratividade dos ensinamentos oferecidos aos alunos ou por eles aprendidos sem uma interferência significativa do(a) professor(a)” (MOREIRA e KRAMER, 2007, p. 1038).
Exemplos da equiparação entre uso das TIC e a qualidade da educação podem ser encontrados na maior parte dos programas contemplados pelo PDE (BRASIL, 2007), como por exemplo, E-ProInfo, Formação pela Escola, Mídias na Educação, ProInfo Integrado, Pró-Letramento, Pro-Licenciatura, Sistema Universidade Aberta do Brasil e Banco Internacional de Objetos Educacionais. Assim, do ponto de vista das políticas educacionais, é possível observar a construção de um discurso que relaciona linearmente o uso da tecnologia à qualidade da educação. A partir de sua implementação, esperava-se que essa relação fosse assimilada por todo o sistema educacional.
O discurso que alinha qualidade da educação e tecnologia tem gerado diferentes apropriações pelas áreas de pesquisa em Educação e de pesquisa em EC. Na educação científica, os autores em geral defendem as vantagens das TIC como novos recursos didáticos que atualizam e facilitam o ensino, motivam ou contribuem para o processo de aprendizagem (veja, por exemplo, GIORDAN, 2005; SERRA E ARROIO, 2007). Nesses trabalhos, os recursos computacionais são utilizados para a pesquisa de temas pelos alunos, elaboração de gráficos, planilhas, obtenção de dados em experimentos, visualização de imagens e simulações com a finalidade de motivar ou “modernizar” a aula. Na área de Educação, em contrapartida, encontramos autores que problematizam a inserção das TIC na Educação (por exemplo, PRETTO, 2001; BARRETO, 2009), chamando atenção, entre outros fatores, para a necessária recontextualização desses artefatos, uma vez que são criados em um dado momento histórico e com propósitos específicos.
Entendendo que a apropriação dos discursos envolve um processo de diálogo com intenções e valores que acabam por construir novos sentidos, este estudo problematiza a relação entre o uso das TIC e a qualidade da educação, por meio da investigação do discurso de uma professora de Ciências de uma escola com infraestrutura material e pedagógica adequadas para a inserção da tecnologia na educação. Pelas condições favoráveis dessa escola, pela aproximação entre ciência e tecnologia na sociedade e pela associação das TIC à qualidade da educação no senso comum, pressupomos que a apropriação desse discurso pela professora siga este mesmo sentido. A intenção desse arranjo foi amplificar qualquer variação que viesse a ocorrer em relação a essa hipótese.
Marina, a professora de ciências entrevistada, ocupa o cargo de coordenadora da área de Informática Educativa da escola pública federal onde leciona e também trabalha em uma escola privada. A professora fala a partir dos seus 30 anos de experiência no magistério público e privado e como mestre em Educação. Dirige suas respostas à pesquisadora, professora de Informática Educativa do mesmo colégio público em que atua. Embora nosso interesse estivesse voltado para a realidade dessa escola, percebemos que em alguns momentos Marina alterna sua fala referindo-se também à escola privada em que atua. Em seu diálogo com a linguagem social típica de suas vivências profissionais e com outras linguagens como a discente, a do currículo, a acadêmica e outros discursos atrelados às TIC, foram atribuídos sentidos à relação entre as TIC e a qualidade da educação.
Inicialmente, Marina se declara subordinada ao currículo da escola, aos padrões e às decisões do seu departamento disciplinar e se apropria da palavra de autoridade dos documentos oficiais para justificar sua prática pedagógica. O livro didático e as TIC são vistos por ela como ferramentas para melhorar o desempenho do aluno e potencializam assim, sua concepção de ensino de qualidade.
Os sentidos atribuídos às TIC pela professora as concebem enquanto recursos didáticos, se aproximando assim, de grande parte dos resultados de pesquisa encontrados na literatura em EC. Essa visão também dialoga com o projeto político pedagógico de sua escola, que concebe a informática como recurso para aprofundar o aprendizado e possibilitar novas estratégias de aprendizagem. A melhoria da qualidade do ensino é assim associada à variedade de recursos utilizados para aumento da motivação, sendo as TIC consideradas enquanto um desses recursos. Esses sentidos atribuídos às TIC são respaldados pela racionalidade técnica, que associada ao incremento desses aparatos, representa a melhoria da qualidade da educação científica e reforça o ensino tradicional e propedêutico.  
Marina afirma que faz uso dos recursos que a escola tem para lhe oferecer. Tal afirmação nos sugere que toda a infraestrutura da escola pública em que atua como laboratório de informática e sala de ciências equipada com recursos audiovisuais e de laboratório de ciências, poderia ser utilizada pela professora, o que não acontece. Talvez pelo fato do seu destinatário real ser professora de informática educativa, Marina tenha tido necessidade de justificar que apesar de usar outros recursos, não faz uso do laboratório de informática porque ele é muito demandado por outras disciplinas.
Entendemos essa negação como uma contradição com sua própria voz. Entretanto, a professora modaliza essa contradição ao usar o verbo procurar (“procuro utilizar”), o que nos permite supor, que há recursos que ela não utiliza, como no caso, a informática. Para justificar o motivo pelo qual não utiliza os recursos da informática, levando em conta seu destinatário real, ela pressupõe que o laboratório (“coitado”) é muito solicitado por outras matérias. Em sua justificativa observamos duas marcas de dialogicidade: a pressuposição e a ironia. Na pressuposição, a locutora da enunciação está tomando como tácito que o laboratório de informática é muito demandado pelas outras matérias, o que não é verdadeiro. Nesse caso, podemos entender que a pressuposição tem intenção manipulativa, para amenizar o fato da professora não fazer uso e ter que admitir isso para a entrevistadora. Ela ainda lança mão da ironia para reforçar sua justificativa.
Perguntada sobre a contribuição das TIC para o ensino, Marina responde que, quando comparada à da prova, sua contribuição é limitada, já que nessa comparação, a professora passa a considerá-la como “pequenininha”. Seu discurso reflete a realidade da escola, que atribui sete pontos à nota da prova e três pontos às atividades complementares, que incluem aquelas relacionadas à informática educativa. Sua voz é assim, moldada pelas normas de avaliação, tomadas por ela como discursos de autoridade.
Embora a pergunta tenha focado as atividades realizadas com a informática educativa, Marina generaliza a resposta. Apesar de receber o “produto final” das atividades feitas por meio da informática para avaliar, ao colocar essas atividades junto com outras em um mesmo bloco, a professora deixa transparecer o desconhecimento do processo de realização dessas atividades. Sua concepção sobre as TIC na educação é, enfim, resumida a “uma coisinha”, uma “atividade pequenininha” frente à atividade em sala de aula. Este sentido atribuído pela professora fica claro quando ela a compara à prova, chamando atenção para a diferença de seu valor em relação à real avaliação da aprendizagem. As qualificações das TIC no diminutivo, assim como a entonação expressiva empregada ao pronunciar a palavra prova (“prooooooova”) nos dá indícios do seu acento valorativo para essas atividades.  Segundo ela, a menor cobrança do desempenho no laboratório de informática seria justamente o que agradaria aos alunos, por se diferenciar do sistema de cobrança comum à escola. Desse modo, a professora admite que essas atividades contribuem apenas para a aprovação do aluno, desvalorizando outros aspectos significativos, que poderiam, de fato contribuir para a qualidade da aprendizagem. 
Observamos também que seu ponto de vista sobre a relação das TIC com a qualidade do ensino é relativizado de acordo com o lugar social a partir do qual seu enunciado é produzido. Assim, referindo-se à escola pública, admite que se o professor é “excelente academicamente e passa o conteúdo muito bem sem utilizar as TIC”, a qualidade do seu ensino não é subtraída. Já na escola privada, ela enfatiza que os recursos “são realmente para manter a qualidade do ensino” e os professores são obrigados a usá-los. Os ecos dialógicos embutidos nesses enunciados nos permitiram apreender diferentes sentidos da relação entre as TIC e a qualidade da educação científica e compreender que essa relação é conformada, no seu discurso, pelas diferentes realidades educacionais e sociais em que as TIC estão inseridas.


Recontextualização da qualidade da educação em ciências em diferentes realidades educacionais

Com o apoio do quadro teórico proposto por Bernstein (1996), a relação entre o que é proposto pelos documentos oficiais e o que se pratica em sala de aula é estabelecida a partir de embates entre concepções políticas e econômicas diferenciadas, que permeiam a sociedade. Esta percepção está de acordo com a ideia de que o discurso oficial é sempre objeto de reinterpretação pelos agentes do campo de reprodução com vistas à adequação à cada realidade escolar. Neste sentido, as políticas curriculares não se resumem apenas aos documentos escritos circulantes no campo da educação, mas são produções para além das instâncias governamentais. Isso não significa, contudo, desconsiderar o poder privilegiado que o Estado possui na produção dos sentidos das políticas curriculares, mas considerar que as práticas e propostas desenvolvidas nas escolas também são produtoras de sentidos para tais políticas.  
Os discursos da qualidade da educação moldados pelas reformas educacionais dos anos 90, principalmente pelas políticas curriculares, são referência para o sistema oficial de avaliação, que engloba todos os exames oficiais, entre eles o ENEM. É possível considerar os PCNEM como o documento que representa o conjunto dessas políticas e a referência para a qualidade oficial da educação científica. Elaborados a partir dos princípios da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), os PCNEM orientaram a construção de um novo delineamento para o currículo do nível médio, ligado às exigências contemporâneas e adotando como referencial a contextualização do conhecimento, sendo as disciplinas agrupadas em áreas de acordo com suas semelhanças. Apoiado em habilidades e competências básicas, os PCNEM têm como objetivo preparar o estudante para a chegada à vida adulta e para o exercício pleno da cidadania. Foram implementados no ano de 2000, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, e constituem um projeto governamental de reforma curricular aprovado pelo Conselho Nacional de Educação. O documento cumpre um duplo papel de difundir os princípios da reforma pretendida e de orientar os professores na busca de novas abordagens e metodologias, tendo sido formulado não como um receituário ou como uma lista completa e exaustiva de conteúdos ou tópicos a serem abordados, mas visando à vida individual, social e profissional, atual e futura, dos estudantes. Surgem com a proposta de direcionar e organizar o aprendizado no ensino médio, a fim de gerar um conhecimento real, com significado próprio, não apenas voltado para o acúmulo de informações.
A partir do referencial teórico e dos procedimentos metodológicos brevemente descritos anteriormente, tomamos como objeto de estudo os sentidos das políticas curriculares e da qualidade da educação científica recontextualizados no discurso pedagógico de professores de escolas que diferem quanto ao índice oficial de qualidade no sentido de compreender como se dão estas relações. Visto que estamos interessados em ter indícios do discurso pedagógico dos professores, nosso foco serão os processos de recontextualização instituídos por eles, procurando mostrar como suas ideologias são comunicadas e transmitidas no contexto educacional em que estes sujeitos estão inseridos.
O contexto da pesquisa foi constituído por duas escolas públicas estaduais localizadas em bairros de classe média baixa do subúrbio do Rio de Janeiro: uma de ENEM alto (escola A) e outra de ENEM baixo (escola B). A escola A recebe alunos da rede municipal de ensino a partir de uma seleção que leva em conta o desempenho do aluno durante o segundo segmento do Ensino Fundamental e dispõe de um convênio com uma instituição federal de ensino tecnológico, o que lhe confere um ambiente educacional diferenciado em relação às outras escolas da rede pública estadual. A escola B está localizada próxima a comunidades carentes e oferece ensino noturno regular. Por estas características, recebe alunos trabalhadores, sendo grande parte constituída de adultos.
Entrevistamos seis professores: um professor de Física, um de Química e um de Biologia da escola A (nomeados de Física-A, Química-A, Biologia-A) e um professor de Física, um de Química e um de Biologia da escola B (nomeados de Física-B, Química-B, Biologia-B). O primeiro contato com os entrevistados aconteceu por intermédio da direção das escolas. As entrevistas foram gravadas após manifestação de sua autorização, por meio da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.
As professoras da escola A têm em comum a queixa a respeito da redução da carga horária destinada às disciplinas científicas, o que as faz recontextualizar a proposta curricular estadual, selecionando conteúdos disciplinares específicos em função do que é exigido pelos exames oficiais. Os professores da escola B também consideram que a falta de tempo prejudica a qualidade do ensino de ciências, mas recontextualizam a proposta curricular estadual principalmente em função das precárias condições de aprendizagem dos estudantes, adotando a contextualização dos conteúdos como a melhor forma de atendê-las.
Assim, a tensão entre seguir o currículo oficial das disciplinas científicas e alterá-lo para atender à realidade escolar, observada no discurso dos professores investigados no primeiro estudo, também moldou o discurso dos professores pesquisados no presente estudo. Consideramos que avançamos ao poder associar cada polo da tensão a um determinado grupo: na escola de alto ENEM, os professores seguem o currículo oficial e priorizam os exames oficiais, enquanto na escola de baixo ENEM, eles adaptam o currículo às condições de aprendizagem dos alunos.
Coerentemente, para as professoras da escola A, a qualidade é medida com base nos resultados obtidos nos exames oficiais e a qualidade da sua escola é exaltada ao denunciarem a distância entre sua realidade e a das demais escolas públicas. Segundo elas, é justamente às deficiências das outras escolas bem como a aspectos sociais, que se deve a falta de qualidade do ensino de ciências dos dias de hoje.
Para os professores da escola B, a qualidade da educação se configura, inicialmente, a partir da desqualificação da sua escola em relação às demais escolas públicas ou privadas, em função da falta de condições de aprendizagem da clientela. Atrelam o sentido de qualidade à qualidade oficial dada pelo vestibular e justificam a falta de qualidade da sua escola pelo determinismo socioeconômico que atinge irremediavelmente os estudantes.
Apesar das diferenças entre as realidades pesquisadas, o sentido de qualidade atribuído pelos professores de ambas as escolas à educação científica corresponde ao da qualidade oficial. A qualidade que valoriza o caráter instrumental e utilitarista da educação, evidenciado principalmente após a lei 5692/71 (BRASIL, 1971) e ratificado pelas reformas educacionais dos anos 90, parece ter sido assimilada. Dessa forma, a educação e a educação científica mais ainda, são assumidas como preparação da força de trabalho e não como práticas formativas para todas as dimensões da vida. Nessa perspectiva, a qualidade do ensino passa a ser medida pelo quanto esse ensino está atendendo às exigências econômicas. Entretanto, percebemos diferenças no processo de recontextualização desse discurso, conformadas pela realidade sociocultural de cada escola.
A posição superior alcançada pela escola A no ENEM reflete a aproximação do currículo aos conteúdos cobrados pelos exames oficiais, promovida pelos professores. Na escola de baixo ENEM, os professores, apesar de aceitarem como meta o padrão de avaliação oficial, não conseguem pautar sua prática por este padrão, seguindo caminhos alternativos. Na diferença entre os processos de recontextualização curricular que instituem, o conceito de contextualização, um dos que alicerçam os documentos curriculares referentes ao ensino de ciências, presente no discurso dos professores de ambas as escolas, é recontextualizado de diferentes formas. Na escola A, os conhecimentos contextualizados podem representar uma forma de fazer com que o conteúdo de cada disciplina seja enriquecido ou atrelado à formação para o trabalho. Na escola B, o discurso da contextualização é recontextualizado como solução para a falta de condições de aprendizagem da clientela, as quais não permitem o investimento na preparação para o vestibular ou para o mercado de trabalho. Os professores se preocupam em integrar os conteúdos científicos a questões da realidade concreta dos alunos (como por exemplo, trazendo informações sobre o corpo humano que ajudem na prevenção de doenças e na promoção da saúde), sem reconhecer este processo como garantidor da qualidade do ensino de ciências. Neste caso, a contextualização parece desempenhar o papel de prêmio de consolação.
Assim, a contextualização dos conteúdos científicos, estratégia de ensino recomendada pelos PCNEM, pode tanto desempenhar a função de enriquecer a prática dos professores em uma dada realidade, quanto, em outra, viabilizar a prática possível em um contexto escolar complexo, moldado por aspectos socioeconômicos e culturais desfavoráveis.
As políticas curriculares e outros discursos são, desse modo, recontextualizados por professores das ciências da natureza para compor o que concebem como qualidade da educação. Embora cientes de que as políticas curriculares sejam recontextualizadas de diferentes formas pelos grupos disciplinares (LOPES, 2004), não conseguimos captar tais diferenças, o que consideramos como um limite do presente estudo e uma motivação para futuras pesquisas. A análise realizada apontou mais seguramente para a conclusão de que o discurso pedagógico dos professores reflete realidades educacionais e socioculturais específicas e se harmoniza com o modo pelo qual as políticas curriculares são recontextualizadas.


Contribuições dos estudos realizados

A abordagem sociocultural e a análise bakhtiniana do discurso permitiram considerar as perspectivas docentes como produtos históricos e culturais e compreender como, em diferentes contextos educacionais, professores constroem discursos que conformam o processo educativo e têm impacto na qualidade da educação em ciências que promovem. Por meio dos estudos realizados, chegamos a visões particulares, que nos mostraram a importância da relação discursiva dos docentes com suas escolas, com o currículo, com as políticas curriculares e com as TIC.
Os estudos que realizamos nos mostraram, por exemplo, a importância da relação discursiva dos docentes com o projeto político pedagógico de suas escolas. Foi possível relacionar a heterogeneidade de perspectivas de qualidade à ausência de apropriação de um projeto pedagógico coletivo da escola. Este resultado sugere que o processo de formação docente deve ser visto como integrado à atuação docente, considerando a dimensão formativa da discussão entre todos os integrantes do corpo docente e seu potencial em moldar perspectivas de qualidade para determinada realidade institucional. Essa inovação se desdobra na necessidade de maior investimento nas escolas de nível médio e nas condições salariais dos professores, propiciando tempo adequado para que os professores dialoguem, negociem e atualizem um projeto coletivo que seja produto de todos.
O grupo focal com professores de nível médio sobre qualidade educação revelou a recorrência do sentido da falta de qualidade atribuída à educação pública e privada e, em particular, ao ensino de ciências. Esta falta de qualidade foi atribuída a problemas pedagógicos e políticos. Em geral, os professores se utilizaram da linguagem social típica de sua vivência escolar, em enunciados apartados daqueles nos quais se referiam aos aspectos políticos, sempre ligados à legislação educacional. Embora os professores reconheçam relações entre a educação e a esfera política, percebemos, nas perspectivas dos docentes de docentes de nível médio regular e assim como nas entrevistas com os docentes da EP, o não reconhecimento do caráter político inerente ao ato educativo e a falta da problematização das políticas educacionais na produção de sentidos para a qualidade. Considerando esse quadro preocupante, concluímos que os processos de formação docente (inicial e continuada) necessitam ir além de conteúdos específicos das disciplinas científicas e serem reorientados para questões políticas e sociocientíficas a serem enfrentadas por toda a humanidade.
O caso da professora de ciências e coordenadora da Informática Educativa de uma escola pública federal com amplas condições de infraestrutura para o uso das TIC na educação, que além de não se apropriar destes recursos em sua prática, admitia papéis diferentes desses recursos na qualidade do ensino em escolas públicas e privadas, pode ser um indício da complexidade que está envolvida nos esforços sempre árduos e na maior parte infrutífero de levar os professores a se apropriarem das TIC. A abordagem sociocultural e discursiva parece ser um caminho promissor para compreendermos melhor estas dificuldades.
As relações que encontramos entre recontextualização das políticas curriculares e qualidade da educação mostraram, entre outros aspectos, que a contextualização dos conteúdos científicos pode tanto enriquecer a prática pedagógica dos professores em uma dada realidade, quanto, em outra, representar um caminho para viabilizar uma prática possível em um contexto escolar complexo, moldado por aspectos socioeconômicos e culturais desfavoráveis. Neste caso, os professores passam a ver a contextualização de conhecimentos não como incremento da qualidade do ensino mas apenas como uma alternativa para lidar com a difícil realidade educacional que enfrentam.
Destacamos como resultado fundamental para alimentar a discussão sobre a qualidade da educação científica, o discurso docente que tenciona suas finalidades em dois polos: de um lado, como preparação da força de trabalho e de outro, como formação integral, para todas as dimensões da vida. Tomando o estudo realizado no contexto da educação profissional como emblemático por girar em torno dessa tensão e mostrar nuances entre estes polos, é possível argumentar que a educação científica  e a qualidade da educação científica  está longe de ter o mesmo sentido para os docentes e para a educação de seus alunos e não pode ser vista apenas pelos índices oficiais de avaliação.
Ao deixar de considerar a complexidade das realidades educacionais e pautando-se apenas pelos índices oficiais, as ações políticas se empobrecem. A partir dos estudos realizados fica clara a necessidade de alimentar as políticas educacionais com pesquisas que analisem criticamente o que dizem e pensam os professores em serviço, e futuramente, que venham a ouvir alunos, pais de alunos e a sociedade em geral sobre os sentidos de qualidade da educação. Isto não quer dizer que possamos abrir mão de conhecimentos e habilidades básicas, mas que a qualidade da educação científica não pode se restringir ao conteúdo e ao desempenho em exames oficiais.


Referências

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[1] In memoriam.
[2] Projeto de pesquisa intitulado “Ensino de ciências de qualidade na perspectiva dos professores de nível médio”, apoiado pelo Ministério da Educação através do programa Observatório da Educação, Edital 001/2008 - CAPES/INEP/SECAD.